Em um mundo cada vez mais conectado, o deslocamento humano é constante, mas a discriminação contra migrantes, refugiados e povos de diversas origens continua a crescer, reforçando barreiras e intensificando desigualdades. No Brasil, país historicamente moldado pela diversidade cultural e pela acolhida de diferentes povos, a xenofobia – expressão de ódio e discriminação com base na origem, cultura ou nacionalidade – se manifesta como uma das formas mais nocivas de discurso de ódio.
Dados do Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH) evidenciam que a internet é o ambiente que mais estimula crimes de ódio no País. Segundo a plataforma, através de levantamento realizado pela Central Nacional de Denúncias da Safernet, cerca de 26 mil casos de crime de ódio no ambiente virtual sobre xenofobia foram denunciados entre 2017 e 2022.
Entre os anos de 2021 e 2022, as denúncias de xenofobia cresceram 874%, superando as acusações de intolerância religiosa, racismo, LGBTfobia, misoginia e neonazismo registradas no mesmo período. Ainda segundo a pesquisa, entre 2022 e 2023, houve crescimento de 252,25% nas denúncias.
Interseccionalidades
Parte integrante do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), a coordenação-geral de Promoção dos Direitos das Pessoas Migrantes, Refugiadas e Apátridas (CGMRA) tem intensificado esforços para enfrentar o discurso de ódio e promover a inclusão social. Sob a liderança da coordenadora-geral Ana Maria Gomes Raietparvar, o setor vem articulando ações que abrangem educação, conscientização e a integração social de migrantes e refugiados, orientado por quatro eixos principais: formação cidadã, participação social, integração social e diálogo interfederativo.
“Dentro do eixo de formação cidadã, temos promovido ações específicas voltadas à conscientização e educação da população, especialmente gestores públicos e migrantes, sobre os direitos e o respeito a essa população no Brasil”, informou a coordenadora-geral ao ressaltar ser fundamental entender que migrantes e refugiados são parte integrante da nossa sociedade, com direitos iguais aos dos brasileiros.
Apesar dos avanços, o combate à xenofobia no Brasil enfrenta desafios complexos. Raietparvar aponta que, em um cenário marcado por crises políticas ou econômicas, é crucial que brasileiros e migrantes se unam na defesa de políticas públicas inclusivas. “Migrantes e refugiados nos enriquecem cultural e economicamente; eles são parte fundamental de quem somos como nação”, observou.
A criação do Fórum de Lideranças Migrantes, Refugiadas e Apátridas (FOMIGRA) em abril deste ano é um marco nesse sentido. A iniciativa promove o diálogo e a participação direta dessas populações na formulação de políticas públicas. “O FOMIGRA é uma conquista importante para garantir que essas vozes sejam ouvidas e suas necessidades atendidas”, explicou Ana Maria.
A coordenadora salientou ainda a importância de considerar as múltiplas identidades dos migrantes (raça, gênero, religião, etc.) no desenvolvimento de políticas. “A xenofobia se entrecruza com outras formas de discriminação, como o racismo e a intolerância religiosa. Por isso, nossas ações precisam ser interseccionais”, lembrou. Para lidar com essas complexidades, o MDHC está conduzindo pesquisas em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), com foco em populações específicas e suas necessidades.
Em outra frente, a Operação Acolhida, do Governo Federal, atua em Roraima oferecendo suporte a populações refugiadas e migrantes, numa resposta humanitária às demandas que chegam ao Brasil pela fronteira da Venezuela. A iniciativa contribui para a integração socioeconômica e cultural. Um balanço do início de 2024, divulgado pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, indica que a operação acolheu e ajudou a interiorizar mais 125 mil migrantes e refugiados, que vivem, atualmente, em 1.026 municípios espalhados por todas as regiões do país.
Luta por visibilidade
Jennifer Alvarez, mulher andina, descendente do povo Quechua e migrante colombo-peruana, relata episódios cotidianos de preconceito que marcam sua vida no Brasil, onde vive desde 2006. “Quando cheguei, fui rebaixada de série na escola, o que me fez sentir menos capaz. Além disso, um professor de química me obrigava a ler em voz alta todas as aulas, sem propósito pedagógico, e me corrigia com deboche. Essa experiência me marcou profundamente”, contou.
Jennifer alerta que a xenofobia vai além de agressões explícitas, manifestando-se também em julgamentos baseados em referenciais culturais e sociais, potencializadas através de discursos de ódio. “Muitas vezes, tenho que explicar repetidamente que meu documento é brasileiro, mas ainda assim, enfrento desconfiança e, às vezes, até a recusa de acesso a certos lugares”, revela Jeniffer, pontuando que sua situação migratória foi regularizada somente após a Anistia do governo Lula.
Atualmente, Jennifer integra organizações como a Coletiva Mulheres em Migração pela Paz e o Ayni – Articulação de Indígenas Andinos Migrantes no Brasil, que buscam dar visibilidade e voz aos migrantes e destaca que as redes de apoio, principalmente da sociedade civil, são essenciais para a integração e luta por direitos. “Essas organizações fortalecem a rede de apoio e garantem a nossa voz nos espaços de decisão”, argumenta.
Apesar dos desafios, Jennifer acredita que campanhas de sensibilização e a participação direta dos migrantes em decisões políticas são fundamentais para combater a xenofobia. “Precisamos de espaços onde possamos ser protagonistas das decisões que afetam nossas vidas”, defende.
Para o doutor em história pela Universidade Federal Fluminense, Gabriel da Fonseca Onofre, a aversão ao estrangeiro não é um fenômeno homogêneo, variando de acordo com o contexto histórico, social e econômico. “Há inúmeros exemplos de xenofobia no mundo atual. No Brasil recente, foi marcante o sentimento e as ações contra chineses na pandemia de COVID-19. Nos países que recebem muitos imigrantes, caso dos Estados Unidos e dos países da Europa Ocidental e Central no século XXI, a xenofobia é um problema social bastante presente. Nos EUA, a xenofobia dirige-se, sobretudo, aos imigrantes de origem latino-americana, e no continente europeu aos imigrantes africanos ou de regiões de conflito no Oriente Médio”, esclarece o especialista.
Ódio
Ao falar sobre o discurso de ódio, Onofre pontua que ele intensifica a xenofobia ao incitar a violência e a exclusão, criando um ambiente propício para a disseminação do medo e da hostilidade. “As mídias sociais, ao mesmo tempo que são um espaço e instrumento de democratização da comunicação e da participação, representam um lócus privilegiado para a propagação dos mais diversos tipos de discurso de ódio”, adverte.
“Nessas mídias, a produção de conteúdo de forma acelerada e instantânea faz com que seja muito difícil, quando não impossível, responsabilizar o produtor de dado conteúdo ou comentário ou averiguar a qualidade e a confiabilidade de cada uma das infinitas fontes de informação, facilitando, assim, a difusão de notícias falsas, de discursos xenofóbicos, entre outros problemas”, completa o professor.
Onofre acredita que a educação tem um papel fundamental na prevenção da xenofobia e do discurso de ódio. Ele defende que as escolas promovam empatia, solidariedade e respeito à diversidade como valores centrais na formação cidadã. “É fundamental formar cidadãos conscientes dos direitos humanos e capazes de valorizar a diversidade”, sustenta.
A xenofobia é também um dos focos do Grupo de Trabalho (GT) do MDHC que discute estratégias de enfrentamento ao discurso de ódio e ao extremismo. Camilo Onoda Caldas, advogado, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos e relator do GT, alerta que a propagação desse tipo de discurso, especialmente em redes sociais, tem efeitos devastadores. “Essas plataformas permitem que mensagens de ódio se espalhem rapidamente para um público vasto, muitas vezes sem controle eficaz”, explica Onoda.
O recente relatório do Grupo de Trabalho sobre Discurso de Ódio do MDHC destaca que a xenofobia é uma das formas mais prevalentes de discurso de ódio no Brasil. O relatório recomenda ações específicas, como a criação de um “Fórum Permanente de Enfrentamento ao Discurso de Ódio e ao Extremismo”, com vistas a participar, acompanhar e articular projetos e ações de combate aos problemas, além de ações para fortalecer a mobilização em torno de um novo marco regulatório para as plataformas digitais e a inteligência artificial.
Para o especialista, o futuro do combate ao discurso de ódio no Brasil passa pela continuidade das iniciativas, como as do MDHC, um aumento na pressão por uma legislação mais robusta e a criação de políticas públicas integradas que envolvam educação, segurança pública e tecnologia. “Sem que haja uma articulação entre Estado, empresas e terceiro setor, esse enfrentamento não será exitoso”, reforça.