Ódio ou opinião?

Laicidade estatal e o livre exercício religioso: até onde sua opinião não é discurso de ódio?

Aliberdade religiosa é um tema tão essencial que o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) conta com uma coordenação-geral específica sobre o tema na sua estrutura. O órgão promove políticas públicas que visam combater casos como os registrados pelo Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), do ministério. De acordo com dados da plataforma, em um período de seis anos, as denúncias por crimes de intolerância religiosa em páginas da internet triplicaram – os números saltaram de 1,4 mil registros em 2017 para 4,2 mil em 2022.

Para o diretor de Promoção dos Direitos Humanos da pasta, Fábio Mariano, os números refletem uma sociedade que pratica discriminações e intolerâncias, inclusive na forma do racismo religioso, que afeta as religiões de matrizes africanas e tem se acentuado. “O aumento nas denúncias demonstra também uma maior apropriação no direito de praticar a fé e dar visibilidade às violações que antes eram subnotificadas. Isso permite uma ação imediata em territórios muitas vezes invisibilizados e uma atuação específica na criação de políticas públicas”, analisa Mariano.

A fim de promover o respeito, Fábio Mariano ressalta que a Coordenação-Geral de Liberdade Religiosa tem buscado implantar um conjunto de políticas para estimular o diálogo entre as diferentes denominações religiosas e com aqueles que não praticam nenhuma crença, além de incentivar a participação da sociedade civil em diferentes contextos. As iniciativas, segundo o gestor, estão diretamente relacionadas à importância de combater o discurso de ódio.

“O discurso de ódio tem sido produzido com o intuito de desqualificar, desumanizar, destruir grupos ou pessoas de maneira muito assertiva no que diz respeito a determinados grupos sociais. Temos visto como isso se revela em relação a mulheres, pessoas negras, pessoas idosas, LGBTQIA+. Esse discurso se revela também mais enfaticamente contra praticantes de diversas religiões, mas tem recaído, no Brasil, principalmente contra religiões de matrizes africanas, como a umbanda e o candomblé”, enfatizou Mariano.

O racismo religioso sofrido por adeptos de religiões de matrizes africanas, aponta o gestor da pasta, é verificado com a destruição de templos religiosos, a criação de obstáculos para realização de cultos religiosos e a expulsão dos terreiros dos centros urbanos, entre outros exemplos.

“O ministério tem acentuado a participação nas audiências públicas no intuito de elaborar, de maneira conjunta, ações que deem visibilidade a essa realidade, mas também promovam ações que barrem essa prática. Também temos aumentado a nossa participação em fóruns e eventos de caráter religioso e inter-religioso como prática da boa convivência e estímulo ao livre exercício religioso, de crença e não crença”, ressalta Fábio Mariano.

Racismo religioso

Adepta do candomblé (nação ketu), Amandha Moreira, de 38 anos, relata ser uma vítima recorrente de racismo religioso, principalmente, às sextas-feiras, dias nos quais usa roupas brancas. A cor simbolicamente está associada ao respeito aos Orixás Funfun e, visualmente, comunica a paz. Moradora de Sacomã, em São Paulo (SP), a especialista em Comunicação e educadora antirracista narra que os casos incluem inúmeras viagens rejeitadas em aplicativos de transporte, “sermões no estilo pregação”, acusações de “servir a demônios”, desrespeito e violência psicológica. Ela frequenta o terreiro Ilé Obá Ketu Axé Omi Nlá, localizado em Mairiporã (SP).

Em um dos muitos episódios de racismo religioso, Amandha só queria chegar em casa após um dia exaustivo de trabalho. Então, ela chamou uma corrida por um aplicativo de transporte. “Entrei no carro, o motorista estava distraído no celular; quando me viu, ele cancelou a corrida e, sem nenhuma justificativa mais elaborada, apenas me pediu para sair do carro, que não iria me levar mais. Essa foi mais uma das situações em que fiquei estática, sem ter ferramentas possíveis para fazer algo que expusesse o crime contra mim cometido”, conta a educadora.

Temendo por sua segurança, em 14 de julho do ano passado (uma sexta-feira), Amandha saiu de branco, mas sem saiote, sem pano das costas e sem pano de cabeça. Mesmo assim, foi submetida ao julgamento religioso e discriminatório do motorista daquela noite. “Ele aumentou o som do carro e, claro, não era som de atabaques. Em um certo momento, ele se sentiu autorizado a começar a me dar sermões, confundindo o carro com um púlpito. Eu, uma mulher negra, vestida de branco e de guia no pescoço, supostamente ‘adorava a demônios’, segundo ele. E claro, com o poder que ‘Deus concedeu’, ele iria, ali mesmo, ‘exorcizar minhas crenças’”, revelou.

Nessa ocasião, Amandha tomou coragem para registrar o fato, a fim de reunir uma prova contundente da violação de direitos que sofria. “Diferente de outras vezes, em que fui pega de surpresa e com nenhuma possibilidade de registrar o que havia acontecido, ali estava eu, diante de um caso explícito de racismo religioso. Embora me sentindo coagida e insegura, pelo óbvio da vulnerabilidade em que me encontrava dentro do carro de um estranho, racista, decidi gravar a discussão, e tomei os devidos cuidados para que ele não percebesse que eu estava fazendo isso”, completou.

A especialista – acostumada a atuar nas áreas de comunicação não-violenta e promoção da diversidade, equidade e inclusão – conta que a discussão ficou acalorada. Diante da situação, em alguns momentos, ela teve que gerar uma “discordância pacífica” com o intolerante, com o intuito de obter o máximo de registros para criminalizá-lo, posteriormente, dessa vez com provas: as gravações. Amandha Moreira reconhece o quanto precisou e precisa ser forte para combater o racismo religioso. “Um ano depois, estou aqui escrevendo esse relato para vocês, e sem romantizar um final feliz, porque, infelizmente, o racismo sequer nos dá a possibilidade de construir um plot twist”, lamenta.

“Meu adoecimento emocional não me deu forças e energias para mobilizar os processos seguintes, tão pouco meu B.O. foi representado. Confesso que a necessidade de trabalhar exaustivamente para manter minimamente uma vida digna, até o presente momento, continua me ‘levando de volta’ para casa todos os dias. Ainda exausta, mas, persistente e respeitosamente, me vestindo de branco às sextas-feiras, porque eu ainda prefiro a paz”, admite a educadora antirracista.

Relatório

As iniciativas de combate à intolerância religiosa promovidas pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) estão em conformidade com o “Relatório de recomendações para o enfrentamento ao discurso de ódio e ao extremismo no Brasil”, publicado em julho do ano passado pelo “Grupo de Trabalho para apresentação de estratégias de combate ao discurso de ódio e ao extremismo, e para a proposição de políticas públicas em direitos humanos sobre o tema”. O GT foi instituído pela Portaria nº 130/2023, do Ministério, e contou com a participação de integrantes da sociedade civil, do Governo Federal e de instituições de Estado.

De acordo com o relatório, comumente, a intolerância ocorre por religiões dominantes frente a outras expressões de fé não hegemônicas. No Brasil, isto se dá mais intensamente contra as de matriz africana, mas também atinge religiosidades indígenas, cigana e originárias de imigrantes e convertidos, como muçulmanos (islamofobia) e judeus (antissemitismo), bem como pessoas ateias, agnósticas ou sem religião.

Ainda de acordo com o documento, apesar das iniciativas de diversas entidades religiosas, o discurso de ódio e a intolerância religiosa contra líderes, práticas, locais e instituições subsiste. “Mais recentemente, a instrumentalização política das religiões pela extrema-direita, com deturpação da noção do direito às liberdades religiosa e de expressão, tem produzido hostilidades contra pessoas identificadas com os movimentos feministas e LGBTQIA+, e mesmo contra os próprios fiéis de um mesmo grupo religioso, que manifestam opções políticas, opiniões e pensamentos opostos”, completa o relatório.

Próximos passos

A Coordenação-geral de Liberdade Religiosa do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) é um órgão de promoção da cidadania no campo da religião, mas não só. É responsável também por fazer valer o livre exercício religioso e garantir também que possamos conviver de maneira pacífica com aqueles ou aquelas que não professam nenhuma fé. Ou seja, garantir a laicidade estatal e o livre exercício religioso.

Um dos próximos passos é o lançamento, previsto para o segundo semestre de 2024, do Comitê Nacional de Liberdade Religiosa, composto por órgãos do Ministério, bem como de diferentes organizações da sociedade civil. Além disso, está prevista para o fim deste ano a primeira edição dos Diálogos Inter-religiosos em três unidades da federação: Brasília, São Paulo e Paraíba.

Há também o curso “Enfrentamento ao Racismo Religioso no Brasil para agentes públicos”, disponível para todo público na plataforma da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), bem como os cursos “Diversidade Religiosa no Brasil” e “Enfrentamento à intolerância religiosa no ambiente escolar”. A coordenação-geral produziu ainda cartilhas digitais que serão distribuídas para gestores estaduais e municipais, contribuindo com uma formação mais cidadã e fomentando a discussão sobre o papel no combate à intolerância religiosa e ao racismo religioso.

Um conjunto de parcerias também estão sendo realizadas com Universidades e Instituições do Judiciário e da sociedade civil, para mapear e produzir dados com o intuito de criar políticas públicas, como o “Projeto Nosso Sagrado: passados presentes” e o “Projeto Respeite Meu Terreiro”.

“É importante destacar que o nosso papel é o de criar ações que estimulem o diálogo e fomente políticas estratégicas que qualifiquem a participação da sociedade civil em diversas frentes de atuação de maneira sistemática e contínua a fim de que a intolerância religiosa e o racismo religioso deixem de ser uma prática no Estado brasileiro”, conclui o diretor de Promoção dos Direitos Humanos, Fábio Mariano.

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