“Acabei de ver que um dos pinguins gays de um aquário na Austrália morreu e tiveram que mostrar o corpinho dele para o parceiro dele não ficar procurando por ele por aí”, diz a legenda de um dos vídeos publicados pela influenciadora digital Miwa Kashiwagi na rede social Tiktok. O conteúdo, que fala de amor (e dor) entre iguais, acumulava até a publicação desta reportagem mais de 4 milhões de visualizações – e seguia crescendo.
Ele mostra Miwa aos prantos ao som da música “My boy only breaks his favorite toys”, interpretada pela cantora Taylor Swift. “Os tratadores do aquário disseram que o pinguim que continuou vivo começou a cantar de tristeza, e os outros pinguins do recinto começaram a cantar com ele depois”, continua a legenda.
Aos 23 anos, Miwa se define na rede social como “lésbica de RI”, uma referência à formação no curso de Relações Internacionais. A bandeira do arco-íris, símbolo da população LGBTQIA+, completa o perfil.
“Eles têm sentimentos”, diz um internauta. “Que dor”, escreve uma das 644 mil seguidoras. Mas nem sempre as reações ao conteúdo publicado pela influenciadora despertam sentimentos de afeto ou solidariedade. Ao contrário. Desde muito cedo, Miwa se “acostumou” a conviver com os “haters” – seguidores que se expressam por meio de frases carregadas de raiva e preconceito.
É “comum”, como diz Miwa, “entre muitas aspas”, encontrar por lá comentários de ódio – na maioria das vezes, os ataques são voltados à orientação sexual da influenciadora. Alguns xingamentos incluem expressões lesbofóbicas, como “caminhoneira” ou “sapatão”. Outros, se utilizam de frases tipicamente machistas como “pq vc não vai lavar a louça?!” ou “teu lugar é na cozinha”. Também é comum se deparar com ataques de cunho religioso: “vai rezar” ou “você vai pro inferno” são as frases mais corriqueiras.
Por vezes, as agressões tomam uma escala assustadora. “Eu recebo mais ameaças de estupro corretivo do que de apanhar na rua”, conta entre um misto de indignação e incredulidade.
Os primeiros ataques surgiram ainda na época do ensino médio, quando Miwa era adolescente – e, registre-se, menor de idade. Foi nessa fase que ela se descobriu como mulher lésbica – na verdade, nem tinha certeza, “talvez fosse bi”, conta – e optou por assumir publicamente sua sexualidade.
A avalanche de comentários preconceituosos, alguns deles de cunho nazista, foi instantânea. “Foi um ódio completamente gratuito, de um milhão de perfis fakes, me mandando mensagens anônimas, muitas ofensas – muitas, mesmo”, relata.
E em uma tentativa de agredi-la ainda mais, os “haters” cadastraram o número do telefone de Miwa e publicaram fotos dela em um site de acompanhantes. “Um dia, eu acordei e estava recebendo muitas mensagens de homens desconhecidos me perguntando quanto era o programa”, conta. “Foi bizarro. Eu surtei e fiquei muito nervosa”, lembra. Após denunciar o site, as fotos foram removidas.
Discurso de ódio
A violência na internet contra pessoas LGBTQIA+ viveu uma crescente ao longo dos últimos anos no Brasil. Levantamento realizado pela organização SaferNet mostra que o número de páginas denunciadas por conterem evidências de crimes de ódio contra essa parcela da população saltou de 2.592, em 2017, para 8.136, em 2022 – um aumento de mais de 300%.
Em 2023, no entanto, o número de denúncias voltou a cair para 2.561 casos, uma redução de 68,5%. A SaferNet diz que a queda já era esperada, uma vez que as denúncias de crimes de ódio aumentam em anos eleitorais – comportamento semelhante foi registrado em 2018, 2020 e 2022. E que, depois de filtradas, as denúncias são encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF), que investiga os casos.
Denuncie crimes de ódio ao SaferNet.
Para o ativista e advogado Renan Quinalha, a ascensão e queda no número de denúncias refletem o recrudescimento e a intensificação do discurso de ódio institucionalizado por lideranças políticas do período. “A declaração de que ‘menino veste azul e menina veste rosa’ é uma manifestação bastante violenta dessa visão dual e binária entre o masculino e o feminino”, explica.
Segundo ele, a visão ideológica tem reflexos culturais na sociedade e, consequentemente, na internet. “As pessoas acabam reproduzindo isso por acharem que não tem gravidade nenhuma manifestar uma opinião disfarçada de discurso de ódio. Não custa lembrar: isso é crime”, salienta, ao lembrar que o Marco Civil da Internet e a Constituição Federal preveem punições para os crimes de injúria praticadas no mundo virtual. “A internet não é uma terra sem lei”, lembra.
“O cenário político e ideológico influencia diretamente a vida da população LGBTQIA+ e, nos nossos dias, a gente vê, não só no Brasil, mas em outras partes do mundo, uma extrema-direita que tem cultivado o ódio contra grupos vulnerabilizados, especialmente, contra a população LGBTQIA+ e, ainda mais, contra a população trans”, analisa.
Um resistente da homofobia
A praça principal de Moreno, município pernambucano com pouco mais de 63,7 mil habitantes, estava cheia naquele 8 de dezembro de 2018. Era feriado na cidade e Jefferson da Cruz, ou simplesmente Jeff, deixou em casa as perucas e roupas cheias de brilho que costumava usar para se montar como drag queen. Afinal, a estrela daquela noite era outra: a festa na praça principal homenageava a padroeira do município, Nossa Senhora da Conceição.
O que era para ser um encontro entre amigos para comemorar a aprovação no último ano do ensino médio mudou para sempre a vida daquele jovem, à época, com 22 anos.
Em determinado momento, um homem se aproximou convidando Jeff para dançar. A recusa ao convite desencadeou uma série de ataques homofóbicos – a princípio, verbais. A festa continuou, a noite avançou e, quando Jeff retornava para casa, os ataques voltaram a se repetir. Agora, as agressões se tornaram físicas. Uma delas atingiu Jeff na cabeça e o levou ao chão. Desacordado, ele aspirou o próprio sangue. E, sem qualquer reação, foi estuprado pelo agressor antes de ter objetos introduzidos no ânus.
Em coma, o jovem Jeff foi transferido para um hospital, a 23 quilômetros dali, na capital, Recife, onde ficou internado por sete meses em estado vegetativo. Lá, ele passou por uma traqueostomia e teve diagnosticado o traumatismo craniano que acarretou a perda dos movimentos e das ações cognitivas.
“É um misto de raiva e de impotência”, desabafa seu Marco, pai de Jeff, que junto com dona Etiene, a mãe, se reveza no amparo ao filho. “Nós amanhecemos o dia e anoitecemos por Jefferson, para cuidar dele”, relata o pai que não perde a esperança de ver, um dia, o filho caçula voltar a andar.
Levou tempo. Mas o acompanhamento com uma equipe multidisciplinar, formada por médico, fisioterapeuta e nutricionista da Associação Mães da Resistência, fez com que Jeff reagisse. A entidade atua no enfrentamento à LGBTfobia. “Ele é um resistente da homofobia, uma figura da resistência”, afirma a presidente da Associação, Gi Carvalho.
Hoje, Jeff vive em uma cadeira de rodas e se comunica por meio de aplicativos de mensagens em um tablet. Esta entrevista foi feita de maneira, online, por meio da troca de mensagens, com perguntas respondidas pessoalmente por Jeff. “Eu gosto de fazer rir e brincar”, conta o jovem que sonhava performar e, um dia, ser fotógrafo. “O mundo é horrível, mas vou passar por cima de tudo e me recuperar”, resiste.
Perfil das vítimas
Jeff é o retrato das vítimas de LGBTQIA+fobia denunciadas pelo Disque 100, o serviço do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) destinado a relatos de violações contra pessoas LGBTQIA+ vítimas de violência e agressões: homens gays e brancos na faixa dos 20 aos 44 anos.
Os relatos, infelizmente, são cada vez mais frequentes. O número de denúncias saltou de 3.948, em 2022, para 6.070, em 2023. E os atendimentos não param de aumentar. Somente nos nove primeiros meses de 2024, já foram 5.741 casos.
Dados do ObservaDH – Observatório Nacional dos Direitos Humanos vão além: indicam que, em 2022, 11.120 pessoas LGBTQIA+ foram vítimas de algum tipo de violência em função da orientação sexual ou identidade de gênero. Em 38,5% dos casos, no entanto, as vítimas foram pessoas trans ou travestis.
A maioria alega ter sofrido diferentes tipos de agressão: violências dos tipos física (7.792), psicológica (3.402) e sexual (2.669) lideram as estatísticas. De maneira geral, o agressor é alguém conhecido da vítima como ex-companheiros ou namorados (30%) ou, ainda, amigos ou conhecidos (17,7%).
No caso de Ramona Rodrigues, 20 anos, mulher trans e bissexual, os ataques partiram da gerente do restaurante em que ela trabalhava. “Ela errava os meus pronomes, me chamava de ‘ele’, implicava com a minha aparência ou com o meu jeito de falar e de vestir”, expõe. Até que um dia chegou a associá-la à prostituição. “Só por eu ser uma mulher trans, ela pensava que eu me prostituia”, conta.
Os ataques começaram depois que Ramona apresentou o documento de identidade sem o nome social. “Isso me afetou de uma forma tão negativa que eu me senti como se estivesse sendo vigiada”, diz. “Era como se eu fosse um monstro, uma pessoa de um outro planeta pelo simples fato de ser uma mulher trans”, acrescenta.
Como resultado, a vítima passou a ter crises de choro e optou por deixar o emprego. “Eu chorava de soluçar, de ficar desesperada e com muito medo. Isso acabou com a minha autoestima e com o meu psicológico”, relembra. O desrespeito fez com que, por muito tempo, mesmo precisando de emprego, Ramona optasse pelo mercado informal trabalhando como DJ, produtora cultural ou escritora. “São lugares que, independentemente de quem eu seja ou do que eu seja, consigo exercer a minha função e sei que as pessoas vão me respeitar”, constata.
O país que mais mata pessoas trans
Você certamente já deve ter lido essa frase na internet ou se deparado com ela em alguma notícia no rádio ou na TV: “o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo”. Há 15 anos, o país lidera o trágico ranking de violência contra a população transexual. É o que aponta Dossiê Antra – levantamento realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Em 2023, não foi diferente. Ao longo de 365 dias, 145 transexuais perderam a vida vítimas de transfobia no Brasil. Isso significa que, a cada dois dias e meio, uma pessoa trans foi assassinada no país. No mesmo período, outras 69 tentativas de assassinato foram registradas.
A maioria esmagadora das vítimas fatais foram mulheres trans (93,7%) negras (78,7%) de até 35 anos de idade (79%), moradoras das periferias das grandes cidades brasileiras. No caso específico das travestis e mulheres trans, elas têm até 32 vezes mais chances de serem assassinadas que homens trans, pessoas trans masculinas e pessoas não binárias.
Para a secretária da Antra, Keila Simpson, além do racismo e da exposição à vulnerabilidade social, o perfil das vítimas reflete uma sociedade machista. “Quando se mata uma travesti ou uma mulher transexual, você não está assassinando somente aquelas irmãs, você está assassinando o gênero que ela está representando ali. É como se alguém dissesse: ‘você nasceu homem e quer ser mulher, então você não vai viver’”.
Leia a íntegra das pesquisas anuais de assassinato e violência contra pessoas trans da Antra.
De acordo com Keila, a transfobia pode ser atribuída a três fatores: primeiro, a visibilidade a que a população transexual está exposta na sociedade brasileira; segundo, a naturalização da violência, inclusive, com a falta de punição aos autores dos crimes; e, por fim, a falta de conhecimento sobre os corpos e as pessoas trans.
“É preciso que a sociedade brasileira compreenda que a nossa população de travestis, mulheres transexuais e pessoas trans de maneira geral, é formada por pessoas como outras quaisquer. Parece que nós somos uma população completamente estranha, o que não é verdade. A nossa diferenciação está na nossa individualidade por conta da identidade de gênero que a gente visibiliza”, defende.
O dossiê aponta ainda que os casos ocorrem, em sua maioria, com o uso excessivo de violência e requintes de crueldade – em 46% dos casos há uso de arma de fogo, mas também é comum que as mortes ocorram por espancamento, apedrejamento, estrangulamento, pauladas, degola ou ateamento de fogo (30%).
Outro dado que acende o alerta: 57% dos assassinatos ocorreram contra profissionais do sexo. Na opinião de Keila Simpson, essas mulheres estão mais expostas à violência direta e vivenciam os estigmas da marginalidade associados à profissão. Além disso, as práticas policiais e judiciais ainda se caracterizam pela falta de rigor na investigação, identificação e prisão dos suspeitos. Ou seja: a impunidade estimula novos assassinatos.
“Na visão dessas pessoas que deveriam investigar, denunciar e judicializar os casos, a prostituição ainda é um demérito. É como se estivessem dizendo ‘além de travesti, é puta?’ como se a prostituição não fosse um espaço de pertencimento das pessoas”, questiona.
LGBTQIA+fobia
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais ou Travestis, Queer, Intersexo, Assexuais. As violências motivadas pela orientação sexual ou identidade de gênero de uma pessoa LGBTQIA+ são o que definem a LGBTQIA+fobia.
O ativista e advogado Renan Quinalha lembra que esse tipo de preconceito não se caracteriza apenas pela violência letal. A LGBTQIA+fobia também é composta pelas manifestações de ódio que, muitas vezes, são exteriorizadas na forma de discriminações verbais ou pela imposição de barreiras institucionais.
“A LGBTQIA+fobia inclui uma série de violações a direitos humanos e que impedem a cidadania das pessoas LGBTQIA+ como o direito à saúde, à educação, ao trabalho, à escola e às várias dimensões da vida da pessoa LGBTQIA+, inclusive, a integridade física”, define.
Isso significa dizer que Miwa e Ramona são tão vítimas de LGBTQIA+fobia quanto Jeff e as mais de 2.011 mulheres e homens trans que perderam a vida entre 2008 e 2023 no Brasil.
Para combater esse tipo de discriminação e preconceito, em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou a homofobia e a transfobia ao crime de racismo. A decisão tem validade até que o Congresso Nacional edite uma lei específica que regule esse tipo de crime. É que o Brasil não possui legislação específica para punir crimes associados à LGBTQIA+fobia. Em caso de homicídio doloso – em que ficar comprovado que o violador teve a intenção de matar – o crime passa a ser qualificado por configurar motivo torpe.
Mais recentemente, em 2023, ofensas dirigidas às pessoas LGBTQIA+ passaram a ser enquadradas como injúria racial. Ou seja, o crime é imprescritível e o agressor não tem direito a fiança nem limite de tempo para responder judicialmente, podendo, inclusive, ser preso.
Contudo, ainda é preciso avançar mais. Para Keila Simpson, da Antra, a equiparação dá celeridade às investigações na medida que estabelece parâmetros para a aplicação de punições. “A gente tem visto muito mais pessoas reagindo a essas investidas e dispostas a denunciar. E o judiciário atendendo a essas questões, muito embora, ainda, eivado de muitos moralismos que não condizem com a realidade com que a gente vive de fato”, pondera.
Sim, a denúncia é fundamental para combater a violência. Renan Quinalha lembra que a pessoa vítima pode e deve registrar ocorrência em qualquer delegacia, inclusive naquelas especializadas em delitos de intolerância ou racismo. Registros em vídeo ou fotográficos e o relato de testemunhas também podem ajudar na investigação e punição dos agressores. “A gente precisa que os casos cheguem de fato aos sistemas de polícia e de justiça para que o Estado possa desenvolver políticas públicas que avancem no combate à LGBTQIA+fobia”, frisa.
No caso de Jeff, a repercussão atraiu o apoio de celebridades e instituições que se mobilizaram para ajudá-lo e pedir justiça. O agressor foi identificado, preso e condenado por homofobia. A pena, no entanto, foi fixada em dez anos, oito meses e 26 dias. Os advogados da família recorreram por entender que a tentativa de assassinato merecia punição maior, de até 20 anos de prisão. “Eu quase morri, mas para essa justiça uó, não foi tentativa de homicídio”, desabafa Jeff. “Seja resiliente, e não desista”, aconselha.
A influenciadora Miwa Kashiwagi lembra que o apoio da família e dos amigos é fundamental para enfrentar o preconceito. “Eu sou muito segura de que ser lésbica não tem absolutamente nada de errado”, assume. Ela orienta que as vítimas procurem opinião de advogados. “Acessar alguém com saber jurídico e que te passe confiança é algo extremamente valioso”, argumenta.
Opinião semelhante é compartilhada por Ramona Rodrigues. “Eu sempre oriento as minhas irmãs e os meus irmãos trans que, sempre que acontecer algum caso de transfobia, tomem alguma medida: abram um boletim de ocorrência, levem para a defensoria pública, defenda os seus direitos como ser humano”, orienta. “Não fique calado”, recomenda.
Texto: D.V.
Edição: B.N.
Para dúvidas e mais informações:
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